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 Uma entrevista com a morte, a amante do pecado

Uma entrevista com a morte, a amante do pecado

No auge da dor por causa da ruína de seu povo, o profeta Jeremias personifica a morte e clama contra ela: “A morte subiu pelas nossas janelas e entrou em nossos palácios, exterminou das ruas as crianças e os jovens das praças” (Jr 9.21). Cerca de seis séculos depois, no auge de seu entusiasmo pela vitória de Cristo sobre a vitória da morte, o apóstolo Paulo personifica outra vez a morte e zomba dela: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu galardão?” (1 Co 15.55.)
Abertos estes precedentes, Ultimato também trata a morte como se fosse uma pessoa e faz com ela a seguinte entrevista:

I.
A Mais Teimosa e Iniludível Manifestação da Finitude e Impotência Humana

Repórter – Quem é você?
Morte – Sou a amásia do pecado.

Repórter – Não entendo.
Morte – Deus não me incluiu em seus planos na criação do homem. O pecado foi o cavalo de Tróia para me introduzir na criação de Deus.

Repórter – Desde quando?
Morte – Desde a queda.

Repórter – O que você chama de queda?
Morte – A besteira que o homem cometeu no jardim do Éden.

Repórter – A ingestão do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal?
Morte – Não.

Repórter – Então, o que foi?
Morte – O que aconteceu antes da ingestão do fruto proibido: a arrogância do homem de querer ser igual a Deus e a subseqüente desobediência.

Repórter – Quer dizer que você é tão velha quanto o homem?
Morte – Assim diz a Escritura: “O pecado entrou no mundo por meio de um só homem e o pecado trouxe a morte” (Rm 5.12).

Repórter – O que você pretende?
Morte – Meu propósito tem sido provocar a cessação definitiva de todos os atos cujo conjunto constitui a vida dos seres organizados, isto é, a desintegração somatopsíquica, que reduz o corpo humano ao estado de putrefação, ao esqueleto e, por fim, ao pó.

Repórter – E você se gloria disso?
Morte – Eu me glorio em ser a mais teimosa e iniludível manifestação da finitude e impotência humana.

Repórter – Sem exceções?
Morte – Não admito exceções. Sou um fenômeno universal. Veja como termina o primeiro livro da Bíblia, aquele que narra a criação dos céus e da terra e o início da vida: “Morreu José da idade de cento e dez anos, embalsamaram-no e o puseram num caixão no Egito” (Gn 50.26).

Repórter – Quer dizer que ninguém escapa à sua fúria?
Morte – Respondo com a sua Bíblia: “Ninguém pode dominar o vento nem segurá-lo. Assim também ninguém pode evitar a morte nem deixá-la para outro dia.” O pregador ainda acrescenta: “Nós temos de enfrentar esta batalha, e não há jeito de escapar” (Ec 8.8 em A Bíblia na Linguagem de Hoje).

Repórter – Você concorda com a afirmativa de Salomão de que “os vivos sabem que hão de morrer” (Ec 9.5)?
Morte – No fundo todos sabem. Muitos, todavia, afastam de si essa certeza e vivem como se nunca fossem morrer.

Repórter – Não é também o seu caso?
Morte – Tapar o sol com peneira é um expediente antigo e válido. É como o placebo.

II.
O Rei dos Terrores

Repórter – Tem idéia de quantas vítimas você faz por hora?
Morte – Seria preciso contar. Todavia, escreve aí 1.400 mortes por hora ao redor do mundo.

Repórter – Parece que esse número era bem maior há trinta anos atrás.
Morte – Na década de 1960 eu fazia 4.500 mortes por hora, três vezes mais.

Repórter – O que está acontecendo?
Morte – A expectativa de vida ao nascer está aumentando em quase todos os países do mundo. No Japão era de 78 anos em 1988. Cinco anos depois subiu para 80 anos. No caso do Brasil, a elevação foi de 65 para 67 anos no mesmo período.

Repórter – Você vê o avanço da medicina e a melhoria da qualidade de vida como ameaças?
Morte – Não recebo ameaças de ninguém. Tenho sido campeã invicta. Sou incorrigivelmente inexorável. O máximo que a ciência consegue é me conservar afastada apenas por algum tempo. A vitória final é sempre minha.

Repórter – Às vezes me parece que você não está dando conta. O saldo entre os que nascem e os que morrem é enorme: na ordem de 9.300 novos habitantes do planeta por hora. A população do mundo está aumentando muito: éramos 3,2 bilhões em 1975 e agora somos 5,6 bilhões. Quando os recém-nascidos de hoje tiverem 65 anos, o mundo terá cerca de 11 bilhões de habitantes.
Morte – Não obstante, a vida humana continua sob o meu poder.

Repórter – É muita presunção.
Morte – Não me desculpo.

Repórter – Lamenta-se por aí que você entra sem ser convidada, não avisa quando vem, mete-se em ambientes reservados…
Morte – Você está querendo citar o profeta Jeremias, que disse a meu respeito: “A morte subiu pelas nossas janelas, e entrou em nossos palácios, exterminou das ruas as crianças, e os jovens das praças” (Jr 9.11). Sou mesmo rude. E também implacável. Um dos amigos de Jó me chamou com muito acerto de O rei dos terrores (Jó 18.14).

Repórter – Há alguma coisa mais amarga do que a morte?
Morte – Não creio, embora um dos sábios de Israel, que tinha muita implicância contra as mulheres adúlteras e prostitutas, tenha dito que um certo tipo de mulher é mais amarga do que a morte.

Repórter – Que mulher?
Morte – A mulher cujo coração são redes e laços, e cujas mãos são grilhões (Ec 7.26). A tal mulher cujos lábios destilam favos de mel e cujas palavras são mais suaves do que azeite, mas cujo fim é amargoso como o absinto e agudo como a espada de dois gumes (Pv 5.3-4).

III.
Pior do que Herodes

Repórter – Quais instrumentos você usa para colher tanta gente em todos os quadrantes da terra em tão pouco tempo?
Morte – Os mais variados e originais possíveis. Aqui está uma listagem, talvez incompleta: 1) Os flagelos naturais, como abalos sísmicos, enchentes, furacões, seca, etc. Só o terremoto de 1556 em Shensi, na China, matou 850.000 pessoas. 2) Os acidentes de trabalho e de trânsito. Em 1995, 4.000 brasileiros morreram em acidentes de trabalho e 42.000 americanos perderam a vida na chamada epidemia das rodovias. 3) Os conflitos bélicos, entre nação e nação, entre etnia e etnia dentro de um mesmo país, e entre oprimidos e opressores. As 130 guerras havidas nos primeiros setenta anos do presente século me renderam 90 milhões de mortos. 4) O crime organizado. A cada ano 47.000 brasileiros são assassinados. Mais da metade (66%) dos jovens entre 20 e 29 anos estão entre os mortos. Aliás, a minha estréia deu-se através de um crime de morte, quando Caim matou a Abel. 5) Os excessos e os vícios do próprio homem. Só o cigarro antecipa a morte em quinze anos e mata 100.000 pessoas por ano. 6) As enfermidades velhas e novas a que todos estão sujeitos. No início deste século a pneumonia e a tuberculose eram meus instrumentos mais eficazes. Na década de 70, as doenças cardíacas e os tumores malignos tomaram o lugar da pneumonia e da tuberculose. Estou trazendo de volta a tuberculose, que já está matando 2,2 milhões de pessoas a cada ano. A grande novidade foi a epidemia da Aids, introduzida na década de 80. A cada dia surgem 7.500 novos infectados pelo virus da Aids ao redor do mundo. A morte deles já está decretada, pode ocorrer daqui a onze meses, como em geral acontece com os doentes da cidade de São Paulo, ou daqui a 42 meses, como acontece com os doentes da cidade de São Francisco da California.

Repórter – Parece que você não tem tido muito êxito através das mortes provocadas por acidentes aéreos. No ano passado apenas 200 americanos morreram vítimas de algum desastre de avião.
Morte – Em compensação, no mesmo período, 800 americanos perderam a vida por causa de objetos que caíram em suas cabeças e 300 porque escorregaram na banheira.

Repórter – Você falou em instrumentos variados e originais. O que você quer dizer com instrumentos originais?
Morte – Quero dizer que alguns dos meus mortos procedem de pena capital, imposta pelo governo de alguns países. Só no ano passado, a China mandou executar 2.190 pessoas, a Arábia Saudita 192 e os Estados Unidos 56.

Repórter – Em Serra Leoa, 164 crianças em 1.000 morrem antes de comemorar seu primeiro aniversário. Em Níger, 320 crianças em 1.000 morrem antes de atingir a idade de cinco anos. Essa matança de inocentes não lhe causa repugnância?
Morte – Não sou melhor que Herodes, que mandou matar todas as crianças do sexo masculino de dois anos para baixo, residentes em Belém e seus arredores. Quero ser pior.

Repórter – É por esta razão que você arranca do ventre materno criancinhas ainda em formação e apressa a morte dos que estão morrendo?
Morte – Chamo o primeiro caso de aborto, isto é, a interrupção da gravidez ou daquele processo de tecer a criança no seio da mãe, que o Salmo de Davi denomina romanticamente de algo “assombrosamente maravilhoso” (Sl 139.14). Só na Inglaterra e no País de Gales, já foram realizados mais de quatro milhões de abortos, de 1967 a 1993. Chamo o segundo caso de eutanásia, isto é, a ação ou omissão que produzem a morte pela sua própria natureza.

Repórter – A morte por suicídio escapa de sua jurisdição?
Morte – Não. É apenas um método econômico de matar, no qual o agente e o paciente são a mesma pessoa, num clima de ausência de lucidez e de liberdade. No ano passado 22.445 japoneses deram cabo às suas próprias vidas.

IV.
A Morte da Morte

Repórter – O que você acha das sociedades criônicas?
Morte – A Ciência jamais conseguirá reviver um cadáver, mesmo protegido da putrefação por se encontrar em suspensão criônica.

Repórter – Como você encara os casos de ressurreição havidos nos tempos bíblicos, especialmente na época de Jesus?
Morte – Lembre-se de que todos os ressuscitados tornaram a morrer depois de alguns anos a mais de vida.

Repórter – E o caso de Jesus? Está escrito que ele ressuscitou dentre os mortos, apareceu vivo com muitas provas incontestáveis durante quarenta dias e, depois, foi assunto ao céu, onde se encontra ao lado direito de Deus.
Morte – Não acredito nessas coisas. O cristianismo está mesclado de mitos.

Repórter – Não acredita ou foge delas?
Morte – Passemos para a próxima pergunta.

Repórter – Qual o versículo da Bíblia que você mais aprecia?
Morte – É esta palavra de Paulo: “A morte se espalhou por toda a raça humana porque todos pecaram” (Rm 5.12).

Repórter – E o de que você menos gosta?
Morte – Todo o 15º capítulo da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, especialmente o verso 26: “O último inimigo a ser destruído é a morte”.

Repórter – Por quê?
Morte – Porque esse versículo dá uma esperança ilusória.

Repórter – Não é ilusória. Ela é coerente com a natureza de Deus, com a história da revelação e com a aspiração escondida no coração humano de que a morte não é a última página do livro da vida. Oitenta por cento da humanidade acredita na sobrevivência depois da morte.
Morte – Baseando-se em quê?

Repórter – Uma grande parte baseia-se na vitória de Jesus.
Morte – Que vitória?

Repórter – Estamos invertendo os papéis. Sou eu quem faço as perguntas e não você. Mas deixa ficar. Eu respondo. A vitória de Jesus é a sua encarnação, é a sua vida sem contaminação do pecado, é a sua morte vicária, é a sua espetacular ressurreição ao terceiro dia. A vitória de Jesus é o véu do templo rompido de alto a baixo. A vitória de Jesus é a viabilidade do perdão a todo aquele que se arrepende de seus pecados e crê nele. A vitória de Jesus está nesta declaração dele mesmo: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11.25). Você é a anti-vida e ele é a ressurreição. Você é a morte e ele é a vida. Não é à toa que você detesta o capítulo 15 da Primeira Epístola aos Coríntios, pois lá está escrito que a morte veio por meio da desobediência de Adão, o tal cavalo de Tróia que você mencionou, mas a ressurreição dos mortos veio por meio de Jesus (1 Co 15.21).
Morte – Você me deixa brava.

Repórter – E você me obriga a dizer-lhe: “Quando este corpo corruptível se revestir da incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó morte a tua vitória? onde está, ó morte, o teu aguilhão? Graças a Deus que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo.” (1 Co 15.54-57.)
Morte – Você está falando da minha própria morte?

Repórter – Isso mesmo. No novo céu e na nova terra, na nova ordem, “a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram” (Ap 21.4).

Elben César, Revista Ultimato, nov. 1972, ed. 55, p. 4.

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